segunda-feira, janeiro 23, 2006

 
Nenhum ladrão, no mais melífluo dos seus desvarios por riqueza rápida, se lembraria de recorrer a este mecanismo para transpor os muros da casa. Todavia, certa noite, fui mesmo dar com a Sra. Colher aos gritos no meio das escadas, a dizer naquela língua que eu não compreendia muito bem: «Ó Miguel! Ó Miguel! Ai, que fomos roubados!», ou pelo menos foi o que me pareceu ouvir. O marido, o Sr. Colher nem se levantou. O filho Miguel tinha ido à caça. Foi então que percebi que um ladrão se devia ter conseguido infiltrar na casa, ignorando completamente o Portão e empreendendo uma escalada pelo muro, aproveitando-se do adiantado da hora e de já não haver passeantes. Mas quem é que queria passear? Naquela terra cheia de prédios famintos, em que os dias parecem encolher cada vez mais à medida que os anos vão passando, doseando as horas de sol ao ponto de o tempo se dissolver e de eu já me ter esquecido do tempo que aqui estou.
O sítio era, contudo, bem iluminado, o bairro usufruindo de um sistema próprio de alimentação fantasma que permitia uma energia estável, e que possibilitava controlar grupos de dez quarteirões com o toque de um botão.

quarta-feira, janeiro 18, 2006

 
A sua podia ser a dela. Eu não sabia. Eu, éramos todos. Mal chegava, e punha-se logo com conversas…
Para entrar na casa tinha sempre de se cumprir uma espécie de ritual, que culminava invariavelmente comigo a encontrar-me com a Sra. Colher nas imediações da cozinha ou do meu quarto, mas que se iniciava logo à chegada ao Portão. Era uma coisa minúscula. Ninguém diria que uma casa daquela dimensão pudesse ter semelhante coisa a guardar-lhe a fachada. A bizarria persistia no seu mecanismo de abertura. Havia duas estátuas, uma chamada Alfredo, e a outra não me lembro. As duas colunas mínimas que balizavam o Portão deixavam entrever todo o relvado que abrangia o alpendre por detrás delas, e em cima da direita estava o Alfredo.
O Alfredo era a chave. Bastava um leve empurrão para dentro na sua mão que estava livre (a outra segurando uma flauta), para se ouvir um claque e a estátua desaparecer coluna abaixo. Nisto, abria-se o Portão. Ninguém na vizinhança sabia da existência deste mecanismo.

terça-feira, janeiro 17, 2006

 
— Hoje vi a sua amiga.
— Quem, a sua?
— Sim, a sua.

sexta-feira, janeiro 13, 2006

 
Mal o despi, entendi logo. O casaco fez tudo por mim. No momento em que o larguei senti o fôlego do seu éter que me abandonava. Soube-o mesmo quando o vesti. Soube-o quando lhe peguei pela primeira vez. Soube-o quando Victor me perguntou: «Então vocês também andam nisso? Onde é que isso já vos levou?». Vocês, éramos eu e Rum. Quase parecia que sempre o soubera.
A entrada para a cozinha fazia-se por uma garagem anexa à casa, onde estava pendurado o velho tandem amarelo, dando directamente para a despensa. Tirei um bocado de pão, um bolo seco para adoçar a boca, e bebi leite às escondidas. Victor tinha sempre razão, mesmo quando ele próprio pensava que não tinha. Victor escrevia o texto. Victor dava-nos a língua. Victor era a intriga. Victor, Victor, Victor. Victor sabia que tudo podia ser dito de pelo menos três maneiras. Entrei na cozinha.

 
Empurrei a porta empurrado por uma vontade colossal de urinar. Despi o casaco que comprara na véspera. Um casaco preto, duro, de um tecido que eu não conseguia desvendar a origem. Abri os olhos e pousei-o na cadeira. Levei a cadeira até ao meu quarto, com o casaco em cima dela, e notei que já vinha a falar sozinho desde metade do caminho, mesmo quando acompanhava Rum até casa.
Encontrei a Sra. Colher na sua cozinha. Ou na nossa cozinha, como ela gosta de mostrar, querendo à sua maneira simpática suavizar a minha condição de hóspede. Pensei em falar com ela. Seria bom para variar... Serviria pelo menos para desenferrujar as palavras, ou só para ouvir a minha voz em voz alta.
Não, não era isso. Era o casaco.

 
Cheguei à casa.

quinta-feira, janeiro 12, 2006

 
Sessão branca





















































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