quinta-feira, setembro 21, 2006

 
— Com quem estás a falar? — ouviu-se o Sr. Colher, conduzido pelas escadas.
Abotoou-se apressadamente. Arrumou o prato em cima do tabuleiro pondo um talher para cada lado, como se eu mal tivesse tocado na comida, e começou a recitar mentalmente a tabuada, com medo que o marido lhe sentisse o nervoso.
Endireitei-me para que ele me percebesse a altura. — É você, não lhe reconheci a voz — Fez uma pausa. — Esta canícula... Não se pode andar na rua!
— Bom dia, Sr. Colher, posso ir lá acima? — O sono abria-me cada vez mais os olhos, Rum dissera-me: «Estás com os olhos cinzentos! Mas nem estão castanhos, nem estão verdes, parece que tos fizeram platinar»; enquanto admirava os voos sucessivos do meu garfo. «Dói-me a cabeça», pensei eu para Rum. Do outro lado da mesa, a sua imagem fatiava-me com perguntas, respostas, peripécias de ontem deixadas a meio e sem nomes, porque Rum não tinha jeito para contar histórias, enganchava as frases à medida que se ia lembrando e sacudia o cabelo. «Já tinha lá a carta dele, mas entretanto despachei-me e resolvi entrar numa loja. De repente, ouço o meu nome, virei-me para trás e nem imaginas...»; nem se preocupava com o número de pessoas nos seus relatos, nem com o facto de a sua voz se confundir com a delas. Aproximava-se a hora de regressar à casa e eu continuava sem certeza do caminho que levava até ali, apenas que saía sempre apetrechado com uma bagagem ligeira, o indispensável para me manter durante aquelas quatro, seis horas; mais uma hora para almoçar, se tivesse vontade, mas as pessoas começavam a chegar à estufa e já não dava para dormir ali sem ser apontado.

sexta-feira, setembro 08, 2006

 
A voz da Sra. Colher apareceu atrás de mim. A cabeça parou de me doer, de repente, quando me virei para a encarar e vi o vulto ao lado dela, abraçado à cadeira com os meus olhos a olhar para mim. O vulto, por sua vez, olhava para o casaco preto através do reflexo do roupeiro. Aproximou-se com o ruído dos chinelos, transportando ainda o tabuleiro no qual descansavam os restos das duas refeições, juntando-se-lhes agora uma folha de guardanapo pegadiço.
— Desculpe, caí — disse ela, sorrindo — disse alguma coisa entretanto?
­— Está a ouvir vozes, agora.
A Sra. Colher ergueu-se do chão num ballet arrastado, acompanhado pelo rojar dos chinelos.
— Aaah... Caí — disse ela sem abrir a boca. — Desculpe, não o distraio mais.
— Não, não é nada.
— Queria só ver se estava alguma coisa aí dentro.
— Estava a olhar para o saco, — respondi, apontando para o malão. Era ali que eu costumava guardar os cartuchos.
— Vai de viagem?
— Começo a acostumar-me a essas suas interrupções. Estamos a fazer progressos.
Puxou o fecho para cima.
Fez balançar o plástico contendo a etiqueta da velha morada com um toque do indicador.
— A Bel tem olhos cor de napalm — notei eu.
— Isso foi a última coisa de que falei.
Seis anos... Foram só seis anos? Já não tinha tabaco nenhum.

quinta-feira, setembro 07, 2006

 
Do outro lado da porta, senti o cheiro de comida.

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