quarta-feira, abril 08, 2009
Não vi nada no elevador, só a sequência de números embaciados que ia descendo. Tentava esquecer os risos do grupo de jovens que cruzara ao chegar a casa, entretidos com o partir de vidros. Devia escrever um recado à comissão. O meu pai falou comigo durante o dia, antes e depois, e não me pareceu pior. De início, perguntou-me, “sabes quem faz anos hoje?”. Eu, pensando “faz ou faria”, disse que não imaginava. Seria a minha irmã. Depois, respondi: “ah, sim, fantástico…”. E aterrei com as rodas traseiras sobre uma pilha de sucata.
— Disseste que não sabias por algum motivo conhecido?
— Sim, o “quero lá saber”.
— Qual é a apresentação disso? Spray, roll-on?
— Spray.
Vou tentar ver com o meu pai. Talvez possa ser ele mesmo a falar com a comissão. Os putos, à noite, são um perigo. Fazem o que podem, o que é normal, porque a cidade já perdeu a vergonha de ter medo. Só que a comissão não impede que um plástico ou um infravermelho arrombem uma fechadura, ou que alguém meta o dedo no vinho e espalhe uma epidemia que mata um quarteirão inteiro. Como o tremor de terra de anteontem. Sempre achei que iria viver para assistir a um tremor de terra. Por assistir, quero dizer estar lá, adivinhá-lo, ter a sorte de ver passar uma parede ao lado, ou de esperar pela chegada dos bombeiros, mas sempre com o terror presente de quem já sabia que ia perder o jogo. Num minuto estamos à mesa a descascar batatas, no outro vemos o corpo humano por dentro. A pensar “isto pode-se fazer” ou “isto não se pode fazer”. A seguir, uma cara espreita por entre os escombros, que pede para não ser engolida. Sinto fome. Devia descalçar-me primeiro. Tão inútil como listar todos os pânicos de toda a gente, se já sei que o maior de todos é ter de sabê-lo. Pus-me a ver um filme, enquanto decidia se ia mijar ou se ia buscar leite, e o actor era o mesmo de ontem, mas no papel de advogado, fitando-me agora com um sorriso bovino. Tentei concentrar-me no diálogo, mas só me lembrava do pavão.
— Os pretos são 350.
— Novos, são à volta dos 500.
Ele diz que dá para pagar em duas vezes. Se souber de alguém, aviso. Abraço. Ainda não há nada da maratona.
— Disseste que não sabias por algum motivo conhecido?
— Sim, o “quero lá saber”.
— Qual é a apresentação disso? Spray, roll-on?
— Spray.
Vou tentar ver com o meu pai. Talvez possa ser ele mesmo a falar com a comissão. Os putos, à noite, são um perigo. Fazem o que podem, o que é normal, porque a cidade já perdeu a vergonha de ter medo. Só que a comissão não impede que um plástico ou um infravermelho arrombem uma fechadura, ou que alguém meta o dedo no vinho e espalhe uma epidemia que mata um quarteirão inteiro. Como o tremor de terra de anteontem. Sempre achei que iria viver para assistir a um tremor de terra. Por assistir, quero dizer estar lá, adivinhá-lo, ter a sorte de ver passar uma parede ao lado, ou de esperar pela chegada dos bombeiros, mas sempre com o terror presente de quem já sabia que ia perder o jogo. Num minuto estamos à mesa a descascar batatas, no outro vemos o corpo humano por dentro. A pensar “isto pode-se fazer” ou “isto não se pode fazer”. A seguir, uma cara espreita por entre os escombros, que pede para não ser engolida. Sinto fome. Devia descalçar-me primeiro. Tão inútil como listar todos os pânicos de toda a gente, se já sei que o maior de todos é ter de sabê-lo. Pus-me a ver um filme, enquanto decidia se ia mijar ou se ia buscar leite, e o actor era o mesmo de ontem, mas no papel de advogado, fitando-me agora com um sorriso bovino. Tentei concentrar-me no diálogo, mas só me lembrava do pavão.
— Os pretos são 350.
— Novos, são à volta dos 500.
Ele diz que dá para pagar em duas vezes. Se souber de alguém, aviso. Abraço. Ainda não há nada da maratona.